quinta-feira, 7 de junho de 2018

Apresentação de Tia Má




Para escrever existem técnicas, orientações, metodologia. E com a prática muita gente consegue desenvolver a escrita. Mas fazer poesia é uma arte que não tem definição. É expressar em palavras aquilo que é vivido no coração.
A poesia pode ser uma declaração de um amor, ou um protesto. São argumentos doces das inquietações que tomam conta de um ser. A questão é que quem faz poesia deixa de ser único para ser coletivo. Um coletivo de ideias que toma conta do papel e explora as mentes. Leva a emoção e reflexão.
Para muitas pessoas escrever poesias é um refúgio, um mecanismo para desabafar suas dores, amores e conquistas. Mas ler poesias escritas por outra pessoa é ter a chance de encontrar sensações parecidas ditas por outro alguém, mas que te tocam com a mesma profundidade.
Mesmo sendo palco de diversas manifestações culturais, a periferia, ou melhor, as periferias ainda permeiam no imaginário popular como um ambiente inóspito e violento. É a dureza da falta de serviços públicos, do olhar alheio estereotipado, que inspira a criação de poesia.

Sim, a poesia mora em todos os lugares e brota da mente de jovens que estão sedentos por transformação. A poesia é uma arma poderosa! Sim! Uma ferramenta, um instrumento, que possibilita mudanças, e até mesmo constrói novos destinos.

Maíra Azevedo - Tia Má
Jornalista e Digital Influencer


Dicotomia entre dois mundos




Dicotomia entre dois mundos

Eis que gira, gira, na roda de N gira
Era o regime que se estraçalhava em mil pedaços
Diante do banquete para rei Obaluayê
Era o corpo farto para a morada do seu orixá

Bailava pelo ar
Linda como o mistério
Que reside nas dobras das saias engomadas
No movimento do vento entre a mão e o Rum

Está tudo sob outro controle
Sob a tutela de algo mais importante que você
Que seus códigos, que sua “ideologia”
Porém, diante da tua vontade

Sola grossa dos pés descalços
É o giro em outro compasso
Muito poder diante de tu, preta singela
Eis o seu corpo, mas não as suas regras.

Zezé Olukemi é Grafiteiro, poeta, Design Gráfico e Graduando no curso de Tecnologia em Jogos Digitais pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Toda a sua produção traz como característica o engajamento político nas causas raciais. Foi conselheiro de Políticas Culturais do Município de Salvador e é um dos idealizadores dos Saraus Erótico e Boom Poético.

Réu Confesso




Réu Confesso

Tua crespura me abona
Vou de carona no balanço do teu volume
De “carona”, me encara
Me come!?
Qual o teu nome?
Preta...
Me tara teu lume
Treta...
Que barato... minha cara
Quando me olhas toda bicuda
Que teu silêncio não me iluda
Que teu sorriso me acuda
Que o meu, recíproco, apeteça.
Ah...
Tomara que eu mereça!
Chuto letras
Mas dou topada em tuas linhas
Me alinho
Só letro
Converso
Cem versos
Nenhum te resume
Ah...
Tomara que aconteça!
Apelo pra fé
E pro afeto
Mas fico quieto...
É onde eu peco
Me deixa pecar
Chega mais perto
E eu me confesso;
Réu em amar”

Zenon Santos é músico, poeta, militante da causa negra, tem o samba como filosofia, as melodias guias e como inspiração a vida. É a liberdade das coisas sentidas.

Transfiguração




Transfiguração
(Yuna Vitória)

Se me percebo, me questiono.
Se me questiono, me perco.
Se me perco, me acho.
Se me acho, me toco.
Se me toco, me percebo.
E tudo recomeça.
E tudo é vã conversa.
Ou vil engano,
ou grã acerto,
mas sempre um firme acordo
de fins e recomeços,
onde cada tempo é O Tempo
e todo T maiúsculo é uno,
verdadeiro,
dispensando a obrigação
de servir ao lado A
ou ao lado B
pois no alfabeto do ser
nasceu entre o fim e o meio,
no seio do início de um anseio
marcado por
trans
figura
ação.

Yuna Vitória é cantora, compositora e poetisa transgênera. Baiana, natural de Salvador, apaixonada pela transdisciplinaridade, aborda em seu trabalho artístico a generificação dos corpos e suas performatividades. Graduanda em Artes pela Universidade Federal da Bahia, é ativista dos estudos de gênero e diversidade, área de concentração de suas pesquisas e produções.

Cosme e Damião




Cosme e Damião
(Vinícius Araújo)

Família tanto faz, tanto fez
Era uma vez
Gêmeos?, essa história é familiar
Olha lá, a menina tá vomitando de novo
Embora o mais novo... quer sair primeiro.
Desespero exorbitante,
Sua família não vai aceitar,
Correu pro mar
Depois de chorar, ela pediu desculpa.
Hoje ela se culpa
O chá não fez efeito
Pra todo defeito, os dois continua brigando
Família é igual a mãe,
Mãe é amor espelho sem reflexo
Ela fazia amor, e ele só sexo
Esperto... vai ser espertado pelos espinhos
Renegou até rosas artificiais,
Artes marciais, praticam sozinhos.
Precisam de carinho
De um pai, ama o próximo,
É tanto ódio, esqueceu, ele é seu irmão!
Um embrião, querendo ser melhor que o outro,
Disputando ainda com o cordão
Mesmo sem ter sido batizado.
Tá na roda, então deixa completar a gestão
A pressa é inimiga da perfeição
A Bíblia ou o Alcorão?
A paz sempre será uma ilusão.
Quem não tá morto vai morrer
Sentiu se mexer
Mesmo a gravidez sendo psicológica
Descendente de alcoólatra
A educação tava travada
Conversa privada
Nasceram duas facções.
Oxente, minha gente
Isso tá contaminando nossa mente
Parente não vê parentes, só os turistas.
A Síria visitou a Bahia de toda Europa
E os santinhos das eleições.
É tanto santo corrompido por cifrão
Que agora Cosme tá trocando tiro com seu próprio irmão,
Querendo tomar a boca de Damião
Ficção não, facção, possa crê,
Pois um era do BDM o outro da CP
Ficção não, facção
Uma tinha a tatuagem da caveira, e o outro do escorpião
Reflexo da alienação.
Essa é minha história, sobre os gêmeos:
Cosme e Damião.

Vinícius Araújo é poeta e morador do Bairro da Paz. Começou a escrever poesia em 2010 através do rap, quando formou o grupo Delito Poético. Por conviver algumas experiências na favela (Como tiro de raspão na cabeça etc...), hoje manifesta uma escrita bastante marginal, em protesto contra todo tipo de opressão que um jovem periférico passa, e denunciando o contraste social.

Não me venha com seus ideais tratando meu passado como um nada


Não me venha com seus ideais tratando meu passado como um nada

Vitimista não, vitimizada por esta sociedade branca que trata racismo como uma piada

Os gritos de dores da senzala ainda ecoam em meus ouvidos, quando entro na loja e me olham torto;
Quando falam que meu cabelo é meio exótico e que não seria apropriado para o meu RG.

Os gritos da senzala ecoam em minha mente
Quando a solidão da mulher preta é tratada como inexistente.

As chibatadas da casa branca até hoje dói
Racha minha pele
Parte meu coração
Feito porradas da PM nas costas do meu irmão

Mas hoje, os gritos da senzala se transformaram em meus gritos por justiça, que com a força dos meus ancestrais, que sofreram lá atrás, permaneço nessa guerra sustentada pelos meus Orixás.

Chorar nunca mais
Sofrer nunca mais
Pois em meu coração carrego a resistência que Odoyá me traz!

Victória Alcântara é mulher negra, atriz, poetisa e feliz. Moradora da comunidade de São Lázaro, onde faz atuação comunitária diariamente. A arte a escolheu e vive em Victória desde outras vidas. Filha das águas, neta das matas, em uma eterna busca entre o fogo e as ondas que correm em suas veias.

Racista Reversa




Racista Reversa
(Vanessa Coelho)

Não uso de entre linhas 
Sem meio termos
Palavras diretas como flechas
Causando desespero.

Atravessam, 
Sem permissão ou remissão dos meus pecados
Já que desde que nascemos estamos condenados.
Sentença dada, culpada
Mas qual foi o meu erro, se a própria história já começa errada?
Escravidão, racismo institucional 
Geno(etno)cídio, abismo social.

A sua vida, burguês
Não é igual a minha
Seu discurso de meritocracia não condiz com a realidade na periferia
Tipo democracia racial
Mito que me escraviza
E na correria, quando a buzina soou a linha de chegada já tava embranquecida, entendeu?
Pouco importa se os menor tá na escola ou vendendo bala no sinal
No final, cês sempre desatina quando vê preta na graduação 
Me diz, essa preocupação:
É medo de perder a vaga das cotas fraudadas
Ou receio da competição equilibrada? 

Hipocrisia
Eu tô na espreita no meio da agonia 
Observando os "brancos de alma negra"
E sua conveniência indecente,
Antes era vitimismo
Agora cês que ser igual a gente
Mas real,
Cosplay de preto e pobre, 
Não toma baculejo de policial 
Não tem legitimidade pra o lugar de quem durante 300 anos sustenta a base da pirâmide social.

Imagina como seria, ficar na minha pele só por um dia 
Cês não aguentariam 
As gírias cês copiam
Põe silicone pra encorpar
É câmara de bronzear
Faz o seguinte... 
Fecha e fica lá até fritar
Não adianta, no meu bonde você não vai entrar.

De Osklen, desfila com favela na camisa
Suaviza a desgraça 
Mas pra nós, 
NÃO TEM GRAÇA!
NÃO TEM GRAÇA!
Problema de branco não é sangue escorrendo na vala
É febre de madruga 
Então, toma tylenol que passa.

E te prepara,
Repara a restituição 
Porque se tava barata,
Pega visão 
Assumimos o nosso legado 
E tamo causando indigestão.

Vanessa Coelho é mulher, negra, periférica, estudante de Ciências Sociais e integrante do Coletivo ZeferinaS. Define poesia marginal como re-significação do imaginário social em prol da afirmação e da preservação da identidade étnico-racial. “A poesia é a esperança dos meus saírem da base da pirâmide social a partir do resgate da nossa humanidade e do desenvolvimento da consciência crítica.”

Para quem não esperava




Para quem não esperava

Me deixe
Chego invado o eixo
Meto mesmo o queixo
A favela invade
Eu já te disse não se cale
Nordeste se afaste
Salvador de impasses
Descobertas valem
Passaporte encaixe
Não deixe que digam que já é tarde
Cansada de tanta gente dizendo que tudo é impossível para nós
Cansada, de sentir o sangue escorrendo na mão do algoz
Cansada! E percebi, que se não há união não há voz
Impor ao sistema com garra, vamos! Sejamos veloz
Disposta a continuar a luta que os ancestrais cravou
Disposta a crer que no ser humano possa existir amor
Disposta a conquistar o mundo com muita letra e amor
Calado
Cuidado
Eu, nunca mais me calo
Cantaram de galo
Pisamos no calo
Demos um sopapo
Agora, engulam esse sapo.

Udimila Oliveira Santos, preta, 25 anos, moradora de Tubarão/Paripe (subúrbio ferroviário de Salvador), graduanda em Medicina Veterinária (UFBA), técnica em alimentos, formada em vídeo pelo programa Oi Kabum escola de arte e tecnologia, poetisa idealizadora da página Escritudi (Facebook) e integrante do coletivo cabeça, Rapper Udi Santos (projeto: VisiOOnárias), #eupossoseroqueeuquiser.

Luís XIV




Luís XIV

Às vezes mesmo calado eu grito
outras tantas o sorriso disfarça as lágrimas
às vezes quando estou falando vomito e omito
sempre pensando em evitar as lástimas...

Um longo silêncio e por dentro um sarau
Oração e um encontro com D(eu)s
imagens do querer no plano astral
refletidas nos teus sonhos e nos meus

ser livre será sempre como estudar ciência
pesquisar cada parte do ser na essência
para entender tudo aquilo que se sente

buscando o equilíbrio e a consciência
exercitando e adquirindo pa(z)ciência
unindo o passado e o futuro em meu presente.

Tiago Nascimento é um dos fundadores do Coletivo Além das 7 Praças, fundador do Sarau do Gato Preto. Poeta, escritor, ser encantado da poesia da rua, da periferia e das quebradas de Salvador-BA.

Sobrevivente




Sobrevivente

Às seis tocam os sinos... navegar é preciso, viver é preciso
e nesse país de assassinos, ainda cultivo os sonhos de menino.
Márcia (minha mãe) mostrou o caminho:
batalhe mesmo sozinha, sozinho.
Doe, mesmo que doa. Some, mesmo que sumam.

E alguma coisa me diz que dói mais o “ai”
de quem não teve pai pra aprender a ser forte;
aprendeu pelo corte da vida-navalha,
carta que se embaralha em meio ao freio social.
Além do bem e do mal, somente outro sobrevivente
da vida líquida que liquida corpos.

Tomando vacina contra a marcha dos mortos
que tem endereço de classe e cor... vidas quase sem preço
sugadas pelo aspirador de almas que aparece de várias formas:
Estado, drogas, mercado. Ambição, TV, traição.
Sem união: futuro sem previsão...

O que te faz parar pra pensar: A novela ou o jornal nacional?
Instagram ou os meninos no sinal? Pagofunk ou violência policial?
Caminho se faz caminhando, e há dois sentidos pra divisão:
partilhar ou... separar. Mas, lembre-se que a Terra toda é um só lar.

A prece que se tece na escuridão, trará divina luz da criação.
O que temos agora? O presente nas mãos e o mundo lá fora.
Não demora, vai com tudo transformar teu sonho em fato, em ato
e mesmo em meio a fauna, seja força e flora. Fé e flora.
A hora se faz... agora!

Thiago Ribeiro é mais conhecido como Thiago Zion, ou ThiZion. Graduado em Comunicação Social pela UNEB e participa atualmente do Coletivo de Arte/Cultura popular ATUAR e da Associação Artístico Cultural Comunitária Odeart, sediada no Cabula. Em 2012 publicou numa antologia poética da editora VIVARA, a nível nacional; e começou a fazer o exercício da autopublicação em livretos autorais.

Pés no Chão




Pés no Chão

Choro em meio ao meio fio.
O sistema é barril;
Diz que ama o pobre
Mas o deixa morrer
De fome e de frio.
Ignorância mata gente,
Arrogância mata a gente
E quem sonha em ser presidente
Dança na banda do mais rico
Que pode trocar o ritmo
Mas troca apenas o dançarino.
Paga o pato quem consome,
Quem consome é o trabalhador
Consumido a cada suor,
Com o sumiço do seu salário
Que no início do mês
Já se encontra esgotado.
E o povo fica zangado,
Doente e calejado
E o doutor nem sequer
Olha a cara do coitado.
Quando eu era bem pequena
Só pensava em ser artista
Fazer as pessoas sorrirem
Melhorar as suas vidas
Mas lembro de ouvir:
"É melhor cê ser dentista
Pra ter muito dinheiro,
Casa, carro e diarista."
Ainda bem que pensei assim e resisti:
Se pra ter dinheiro terei que viver
Longe da arte, então
É da mala cheia dele
Que vou ter que desistir. Ah...
São tantos salafrários
Ricos: pobres coitados,
Que até cansa tentar explicar
Que o amor é o maior salário.

Taíssa Cazumbá é poetisa e atriz. Natural de Salvador, escreve desde a infância e recita em projetos artísticos desde 2007. É autora do livro “Poesias de Inverno” (2015), quando criou a "A Currute Editora Artesanal". Desenvolve o trabalho de artista de rua, atua nos transportes públicos por onde passa, como em Salvador, onde recita poesias e distribui livretos e livros poéticos. Participou de coletivos de teatro com sua militância através da arte.